quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Entrevista com Ilda Figueiredo


  • Carlos Nabais (texto) Jorge Cabral (fotos) 


«Na América Latina, o capitalismo levou tão longe a sua exploração que os povos não aguentaram mais e começaram a lutar por toda a parte, alcançando mudanças qualitativas importantes»






















Entrevista com Ilda Figueiredo
São inevitáveis grandes mudanças na Europa
Durante dois mandatos e meio foi uma das vozes mais activas no Parlamento Europeu, mérito que lhe é reconhecido mesmo pelos adversários políticos, mantendo sempre uma estreita ligação à realidade do País, que percorreu incessantemente de lés-a-lés, multiplicando contactos, visitas e encontros. A meio do terceiro mandato, a deputada sai das lides europeias, onde será substituída pela jovem Inês Zuber. Em conversa com o Avante!, explica que se trata de uma decisão natural e, em jeito de balanço, fala-nos das profundas alterações negativas ocorridas na União Europeia e da sua determinação de continuar a lutar noutras frentes pela causa justa dos comunistas.

Image 9368

Quais são os motivos da tua saída do Parlamento Europeu ao fim de 12 anos?


Ilda Figueiredo - Foram na realidade 12 anos e meio, já que estamos a meio do mandato (os mandatos no Parlamento Europeu são de cinco anos) e fui três vezes cabeça de lista da CDU ao PE. A isto soma-se, entre outras actividades, cerca de 12 anos na Assembleia da República, cinco anos como vereadora na Câmara Municipal do Porto, não falando da Câmara Municipal de Gaia, onde fui eleita à Assembleia Municipal durante 11 anos, acumulando com outros cargos. Ou seja, desempenho cargos políticos eleitos há cerca de 30 anos. Mas, no que toca ao Parlamento Europeu, trata-se sobretudo de dar a possibilidade a outra pessoa de desempenhar o cargo, porque temos de pensar no futuro e é fundamental passar o testemunho aos jovens, que estão disponíveis para aceitar estas tarefas e que têm condições para o fazer, como é o caso de Inês Zuber.


E porquê agora?


Analisámos esta questão com a direcção do PCP e considerámos que esta era altura para concretizar a substituição, o que acontecerá precisamente no próximo dia 18 de Janeiro, numa semana de sessão do Parlamento, que aproveitaremos para ajudar a integrar Inês Zuber, apresentando-a nas diferentes comissões onde participo e tenho responsabilidades e no grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica, em que participam os deputados do PCP no Parlamento Europeu. Mas o próprio grupo do PCP tem excelentes condições para integrar a nova deputada. É uma equipa que trabalha colectivamente, que conta com João Ferreira, que entrou neste mandato e está a desempenhá-lo muito bem, e com os camaradas do secretariado. Inês Zuber é socióloga, está a terminar um doutoramento em sociologia, e a minha intervenção tem muito a ver com esta área, designadamente na Comissão de Emprego e Assuntos Sociais e na Comissão dos Direitos das Mulheres. Não só pela sua formação mas também pelas suas características e pelas provas que já deu como quadro do Partido, certamente que Inês Zuber irá desempenhar muito bem esta tarefa.


Que balanço fazes deste período no Parlamento Europeu, durante o qual ocorreram tantas alterações da União Europeia? Quais os momentos mais marcantes?


Foi de facto um período marcado por profundas alterações. A União Europeia que temos hoje é bastante diferente da que existia em 1999, quando fui para o Parlamento Europeu. É bastante diferente para pior, e creio que hoje essa é uma imagem clara para a generalidade da população portuguesa mas também de outros países, nomeadamente do Centro e Leste europeu, cuja adesão constituiu uma enorme mudança na UE.
A integração europeia tornou-se cada vez mais federalista, com contornos militaristas e também cada vez mais neoliberais – um capitalismo cada vez mais agressivo. É claro que o capitalismo é sempre agressivo, dado que é um sistema explorador, mas essa sua natureza, antes atenuada por políticas sociais-democratas, manifesta-se hoje com toda a crueza. Diria que caminhamos para um capitalismo monopolista de Estado, em que alguns estados pretendem apoderar-se do que ainda resta da democracia neste espaço da União Europeia. As decisões do último Conselho Europeu (8 e 9 de Dezembro) são disso um reflexo muito forte.
Dos momentos mais marcantes, creio que se destaca a luta contra a dita «constituição europeia», chumbada pelos referendos da Irlanda, da França e da Holanda. Eu própria cheguei a participar na campanha do referendo em França e naturalmente partilhei com os camaradas franceses a grande alegria que foi a vitória do Não.


Disseste há pouco que alguns estados tentam apoderar-se do que resta da democracia. A democracia está ameaçada na UE?


O processo que está em curso visa pôr em causa a própria democracia, tanto ao nível da UE como dos próprios estados-membros. Se as decisões do Conselho Europeu de 8 e 9 de Dezembro forem algum dia concretizadas, Portugal deixa de ser soberano para elaborar o Orçamento do Estado, que é onde se decidem as orientações políticas, económicas e sociais de um país. Se o Orçamento do Estado tiver de ser submetido ao exame da Comissão Europeia, antes da sua aprovação na Assembleia da República, então Portugal fica com menos poderes do que uma Junta de Freguesia, que, apesar de tudo, tem o direito de aprovar o seu orçamento, sem interferência de ninguém. Penso que a agudização das contradições entre as grandes potências e o agravamento geral das condições de vida dos povos tornam inevitáveis grandes mudanças na União Europeia.


A experiência no Parlamento Europeu foi gratificante em termos pessoais?


Claro que foi uma experiência muito estimulante porque permitiu o conhecimento de outros países, outros povos, de outros problemas quer a nível da União Europeia, quer também fora da Europa, muito em particular na América Latina, onde acompanhei quase a par e passo as grandes mudanças que ali ocorreram. Conheci pessoalmente vários dirigentes como Evo Morales, Lula da Silva, Dilma Rousseff, Fernando Lugo, José Mujica e vários outros homens e mulheres, quando lutavam na oposição contra governos quase ditatoriais, e depois tive a alegria de os voltar a ver quando se tornaram presidentes dos seus países. Isto também é a prova de que as lutas valem a pena, nem sempre se ganha mas é possível chegar ao poder. Na América Latina as coisas estão longe de estarem todas resolvidas, mas a situação é muito diferente da que existia há 15 anos, neste caso felizmente para melhor. Neste continente, o capitalismo levou tão longe a sua exploração que os povos não aguentaram mais e começaram a lutar por toda a parte, alcançando mudanças qualitativas importantes. E temos também o exemplo de Cuba, que resistiu com grande coragem à ofensiva do capitalismo. De início estava praticamente sozinha e hoje está muito mais apoiada por uma América Latina em grande mudança. Isto é uma prova de que também vale a pena resistir, e embora as coisas continuem difíceis devido ao bloqueio norte-americano, é evidente que a solidariedade de outros países da região torna a situação em Cuba muito diferente. Tive a oportunidade de viver e acompanhar todos estes processos, o que é de facto muito gratificante e constitui uma valiosa experiência pessoal.


Mas também houve processos de sentido contrário...


Sim, recordo em particular o intenso trabalho contra a guerra no Iraque, desenvolvido por uma grande delegação de que fiz parte, integrada por deputados de vários grupos políticos. Estivemos no Iraque antes da guerra, fomos aos Estados Unidos falar com congressistas progressistas, estivemos na ONU, fizemos tudo o que foi possível para tentar evitar aquele desastre. Infelizmente não fomos ouvidos, mas a história veio demonstrar que tínhamos razão, e não foi preciso passar muito tempo para reconhecerem que a guerra não era a solução para aquele problema. Como não o é em todo o Médio Oriente, cujos povos continuam a ser vítimas da ingerência, pressão e ocupação, por exemplo, por parte de Israel, que conta com a cobertura não só dos Estados Unidos, sejamos claros, mas da própria União Europeia.
Esta política de desrespeito pelos direitos dos povos sofreu recentemente um revés com a recusa do Parlamento Europeu de prorrogar o acordo de pescas com Marrocos, que, como é sabido, abrangia ilegalmente as águas do Saara Ocidental. Isto significa que aquilo que parece uma luta isolada, com o tempo, por vezes, é possível fazer vingar as suas razões justas. Estou a pensar na luta do povo do Saara Ocidental, da Palestina, do Iraque, do Afeganistão, bem como de todo o Norte de África e Médio Oriente, onde as justas lutas dos povos pelos seus direitos estão a ser manipuladas pelas potências imperialistas, que tentam aproveitar a instabilidade política e social para assegurar a defesa dos seus interesses económicos, é disso que se trata…


Como deputada viajaste imenso não só pelo estrangeiro, mas talvez até mais pelas diferentes regiões do nosso País…


Esse é outro aspecto importantíssimo do nosso trabalho que permite manter uma ligação muito estreita à nossa realidade. Fazêmo-lo sistematicamente em conjunto com as organizações regionais do PCP, mas também com organizações, instituições e associações locais, quer a seu pedido quer por nossa iniciativa. Nas visitas a empresas, nos contactos com as populações, nos encontros e debates com os sindicatos, com associações de pequenos e médios empresários e outras, procuramos ouvir os problemas com vista a lhes darmos voz no Parlamento Europeu ou junto das instituições europeias. É um trabalho que se insere na defesa intransigente da produção nacional, da agricultura, das pescas, da indústria, na defesa dos interesses de Portugal.


É sabido que as políticas europeias tiveram efeitos muito negativos no nosso tecido produtivo. As visitas e contactos pelo País confirmam esse quadro de destruição?


Eu própria vivi e acompanhei o desmantelamento de parte do nosso aparelho produtivo. Por exemplo, todo o drama daSorefame, depois Bombardier, o desmantelamento daSiderurgia Nacional, o definhamento da indústria naval, a destruição da indústria têxtil, da indústria vidreira. Ainda há dias estive na Marinha Grande, onde me encontrei com antigos operários vidreiros, cujas fábricas encerraram. São operários altamente especializados, que dominam a técnica do vidro de sopro, e que estão desempregados.
Recordo a supressão da produção de beterraba sacarina, levando ao encerramento da fábrica de Coruche, a única que tínhamos no continente, a redução brutal dos produtores de leite, dos criadores de gado, etc. Vemos hoje terras de cultivo abandonadas no nosso País porque, a partir de certo momento, os apoios foram desligados da produção e passaram a ser atribuídos em função de um histórico, independentemente de se produzir ou não. Naturalmente que os grandes agrários deixaram as terras ao abandono e continuaram a receber o dinheiro.
Assisti ao desmantelamento da nossa frota de pescas, incentivado com verbas comunitárias, e depois à saída dos nossos pescadores para França ou para Espanha em busca de trabalho. Ao mesmo tempo, vemos as frotas desses países a pescar na nossa zona exclusiva e o povo português a consumir pescado importado. O mesmo se passou com a indústria de conservas. É uma dor de alma ver que tudo isto aconteceu, naturalmente com culpas muito sérias das políticas europeias mas também com culpas muito sérias dos sucessivos governos, constituídos pelas três forças políticas que, quer em Portugal quer na União Europeia, têm aplicado e apoiado estas políticas.


O PCP tem sido a única força que ao longo dos anos batalhou pela produção nacional?


Isso é hoje reconhecido pela generalidade dos sectores. Mas o PCP e os seus deputados no Parlamento Europeu bateram-se igualmente pela defesa dos direitos dos trabalhadores. Recordo as várias tentativas para alterar a directiva sobre a organização do tempo de trabalho, até hoje sem êxito, embora no plano nacional estejam a ser dados passos no mesmo sentido. Estivemos também na grande batalha contra a directiva Bolkestein, da qual acabaram por ser excluídos importantes serviços como a Saúde ou a Água. Apoiámos também a luta contra a liberalização da actividade portuária, projecto que foi derrotado três vezes no Parlamento Europeu. É claro que todas estas vitórias só foram possíveis porque os trabalhadores se mobilizaram por toda a Europa.


Falemos dos teus planos para o futuro, sendo certo que continuarás a tua actividade política…


É claro que vou continuar a minha actividade no Partido, mas também no plano unitário, eu tenho responsabilidades em algumas organizações, em particular no Conselho Português Para a Paz e Cooperação (CPPC), onde fui recentemente eleita presidente do conselho de direcção.


Há uma linha de continuidade com tua intervenção no Parlamento Europeu?


De certo modo, sim. Também no Parlamento Europeu o PCP sempre deu muita importância à luta em defesa da paz, contra a guerra, contra o militarismo, em defesa dos direitos dos povos, do desenvolvimento e progresso social. Penso que o CPPC já hoje desempenha um papel importante e que poderá no futuro alargar a sua actividade quer em termos nacionais quer em cooperação com outras organizações congéneres no plano internacional.


A última pergunta prende-se com a publicação do teu último livro, Geografia do Olhar, que é de poesia. Como é que ainda te sobra tempo para escrever poemas?


(Risos…) É uma faceta da minha vida que foi secundarizada face a todas as tarefas que tive de desempenhar.


Uma vocação antiga?


Sim, iniciei-me no suplemento juvenil do Diário de Lisboa, depois houve publicações esporádicas em jornais e revistas, nem sempre com o meu nome completo, e longos períodos sem publicar nada. De qualquer modo, este é de facto o meu primeiro livro de poesia, com pinturas de Agostinho Santos.


São poemas de várias épocas?


Não. Foram todos escritos este ano para este livro, embora em diferentes sítios e situações, nomeadamente durante as viagens à Tunísina, ao Senegal, aquando do Fórum Social Mundial, à Islândia, em Bruxelas e Portugal, por exemplo, durante a última campanha para as legislativas em Viana do Castelo, onde fui cabeça de lista, etc.


E porquê de repente um livro de poesia?


Foi uma ideia conjunta, um desafio que me foi lançado por Agostinho Santos que manifestou a vontade de pintar a partir de poemas meus. E assim foi.